sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Herege

Madeleine fiava distraída, seus dedos ágeis torcendo o fio enquanto sonhava acordada. Olhava a esmo pela janela, de onde a luz da lua cheia inundava o aposento. Perguntava-se quando veria novamente o garoto de cabelos negros com quem estivera correndo nos campos à tarde. Seu nome era Allan Blackcrow. Sua família morava num belo chalé afastado da vila onde ela e sua mãe, Sibila Dell Tyburn, vieram morar há quase um ano. Allan e Madeleine se conheceram em poucos dias, e logo se tornaram amigos inseparáveis.
– Ai! – gritou ao espetar o dedo no fuso.
– Menina, onde está com a cabeça? – acudiu-lhe a mãe, tomando-lhe a roca das mãos. – Vá preparar o jantar, eu continuo com isso.
Levando o dedo ferido à boca, Madeleine correu para a cozinha. Enquanto cortava os legumes da sopa, ouviu uma batida suave na porta dos fundos do pequeno casebre onde moravam. Atravessando a pequena cozinha, a garota abriu a parte superior da porta, abafando um grito de surpresa com as duas mãos ao ver Allan diante de si.
– Vim me despedir de você! – disse depressa o garoto, antes que ela tivesse tempo de dizer algo. – Eles estão atrás de nós, então teremos que nos esconder. Mas eu volto para buscar você, quando puder. Prometo!
Dizendo isso, deu meia-volta e desapareceu. Madeleine levou algum tempo para perceber que segurava algo nas mãos, agora abaixadas. Levando o objeto ao alcance dos olhos, gemeu de espanto ao ver o medalhão de prata com o corvo negro no centro.
Alguns anos se passaram, e a menina Madeleine agora se preparava para o Ritual de Maioridade, pois suas regras havia chegado pela primeira vez esta manhã. Enquanto arrumava a pequena sacola que levaria consigo, lembrava as instruções de sua mãe; deveria ficar na gruta ao lado do Poço Sagrado até a lua mudar. Quando a prova terminasse, alcançaria o grau de Sacerdotisa, e por isso ela mal podia esperar. Escondeu sob as vestes sua pequena faca de prata, tirou do pescoço o crucifixo do mesmo metal, que passara a usar desde quando o novo padre chegou na paróquia, e olhou a jóia em suas mãos. Tinha sido presente do Frei Thimoty, o padre anterior. Madeleine gostava do velho; ele era amigo de sua mãe, e por vezes participava dos festivais. Esse novo padre, porém, lhe causava arrepios...
Guardou a pequena cruz numa caixinha de madeira, de onde tirou outra jóia. Contemplou a medalha de prata, e a pedra negra na forma de um corvo com asas abertas no centro, deslizando a ponta dos dedos pelas bordas do metal. Era o brasão da família Blackcrow, senhores da Antiga Tradição, cujos membros tiveram que fugir da perseguição da Igreja há quase seis anos. Perguntando-se onde estaria Allan, travou o fecho do colar sob seus cabelos soltos. Em seguida, jogou a sacola sobre os ombros e partiu, deixando em sua cama a pequena mancha de sangue que explicaria sua ausência à sua mãe.
Caminhava entre as árvores do bosque, procurando as marcas da trilha que a levaria ao seu breve exílio. Encontrou uma pequena marca em uma árvore de grandes raízes; uma lua crescente entalhada na madeira. Contornou o tronco, equilibrando-se com alguma dificuldade nas raízes retorcidas, e encontrou uma pequena trilha escondida pela vegetação.
Chegou à gruta ao anoitecer. Providenciou rapidamente alguns gravetos e com eles acendeu uma pequena fogueira, diante da qual sentou-se, enquanto preparava um caldo com alguns legumes que trouxera de casa. Depois de comer estirou-se no chão, contemplando o céu, e o cansaço finalmente a dominou.
Alguns dias depois, ao alvorecer, Madeleine caminhava até o Poço Sagrado, como fazia todas as manhãs desde que chegara à gruta, para beber de suas águas antes mesmo de ver os primeiros raios de sol. A pequena fonte brotava das pedras no interior da gruta, e descia por dentro das rochas até o vale. Faltava apenas uma noite para que ela pudesse voltar para casa, mas já não estava tão ansiosa. Sonhara muito com sua iniciação, mas aquele lugar era tão tranqüilo que lhe pesava ter que ir embora. Olhava as pedras tomando forma ao seu redor, à medida que caminhava em direção ao amanhecer fora da gruta. Foi quando ouviu um barulho estranho na mata.
Esgueirando-se entre as pedras, Madeleine chegou a uma rocha de onde avistou dois homens subindo do vale em direção ao ponto onde estava. Pareciam caçadores, mas suas armas eram mais bem elaboradas do que os arcos toscos dos caçadores que conhecia; pareciam-se mais com os dos soldados do Duque de Tintagel, que vira uma vez na vila, poucos dias depois Allan ter partido. Arrastando-se com cuidado de volta à entrada da gruta, Madeleine escondeu-se entre as estalagmites. Algum tempo depois, os homens que vira subindo a encosta entraram também.
Vasculharam a caverna, rastreando o chão, e não demorou para descobrirem as pegadas da garota. Madeleine encolheu-se entre as rochas, tentando não emitir ruído que a denunciasse. Em segundos, a caverna ficou estranhamente silenciosa. A garota relaxou os músculos, quase no mesmo instante em que uma mão agarrou seu pulso e a arrancou de seu esconderijo.
– O que faz aqui, garota? – perguntou o homem, arrastando-a para a entrada da caverna.
– Nada! – balbuciou Madeleine – Eu... me perdi...
– Se perdeu, hã? – aproximou-se o segundo homem – Está acampada aqui há quantos dias, mocinha? E com quem?
– Ninguém! – respondeu apavorada, pois sabia do risco que corria – Estou sozinha!
– Ah! – zombou o primeiro aproximando-a dele com um puxão em seus cabelos – Quer dizer que não há ninguém por perto que possa lhe ajudar?
Ao olhar diretamente a garota, os olhos do homem desviaram-se para o medalhão que ela usava. Agarrou a jóia, e aproximando-a dos olhos com tamanho ímpeto que quase arrebentou a corrente de prata que a prendia, ferindo-lhe o pescoço. Seu grito o fez largar tanto a ela quanto à jóia, e Madeleine recuou.
– Onde ele está? – bradou o homem, aproximando-se devagar.
– Ele quem? – recuava cada vez mais.
– O herege! – trovejou, furioso, apontando para o medalhão. – O filho dos Blackcrow! Onde ele está?
– Eu... eu não sei!
Madeleine levou as mãos à jóia e a confusão em sua mente instantaneamente se dissipou. Eles estão atrás de Allan...
O homem avançou em sua direção, mas parou diante dela com uma expressão vazia nos olhos. Quando caiu, Madeleine pôde ver a flecha de penas negras que o atingira. Um assobio, e o segundo homem tombou atingido no pescoço.
– Madeleine! – o chamado ecoou na caverna – É você?
– Allan! – respondeu a garota – Onde você está?
Pulando de seu esconderijo entre as rachaduras na parte superior da parede de pedra, surgiu um jovem de cabelos negros vestindo um traje leve de couro batido, um arco longo trabalhado e uma aljava presa às suas costas.
– O que faz aqui? – perguntou o rapaz.
– Esta é a Caverna do Poço Sagrado.
– Sei, a iniciação... Mas vamos, temos que sair daqui!
– Como assim?
– Estes homens são do Condado de Dorset. Estão me procurando.
– Mas eu não posso sair da Caverna! É minha prova!
– Madeleine, não pode ficar! Está correndo perigo aqui!
Vendo que a garota não cedia, tomou-a nos braços e levou-a consigo à floresta, onde estariam melhor protegidos. Enquanto preparava uma refeição em uma pequena fogueira escondida em um buraco no chão, observava a garota chorando baixinho. Sabia o quanto aquele Ritual era importante para ela, mas não tinha escolha. Se a deixasse, com certeza a encontrariam. Aqueles dois soldados não eram os únicos que estavam à sua procura; tinha conhecimento de pelo menos mais quatro. Não poderia enfrentá-los, não com Madeleine, mas não sabia como dizer a ela que teria que levá-la consigo. Procurava na mente confusa as palavras que pudessem combinar a necessidade com seu próprio desejo de que assim fosse.
Comeram em silêncio constrangido, mal se olhando nos olhos. Mas em pouco tempo a antiga cumplicidade entre os dois veio à tona, e era como se comunicassem sem palavras. Sabiam que o destino de ambos estava traçado até aquele momento. Madeleine não seria Sacerdotisa, mas já não se importava. Tinha certeza de que a vontade da Deusa era que eles se encontrassem mais uma vez.
Allan aproximou-se dela, e todas as palavras que planejou dizer sumiram em um longo beijo, que nenhum dos dois saberia dizer quem começou. Dormiram como um só naquela noite, sabendo que quando o sol nascesse novamente, suas vidas jamais seriam as mesmas.


By ANGEL

3 comentários:

  1. eu lembro da primeira vez que li esse conto...achei muito doido

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  2. podias postar trechos do christopher aqui... ;)

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  3. "A filha da parteira" e "O herege" são os contos-chave de Arabella... Colocar o Christopher aqui seria publicar informação demais do livro... Quer estragar a surpresa??? ;)

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