terça-feira, 20 de setembro de 2011

ARABELLA - Tomo I {Heresia}

Cap. 5
Fuga

 

Arabella estava sentada na soleira da cabana, limpando os peixes que havia pescado ao alvorecer. Já faziam mais de três meses que morava na ermita com o padre Thimoty, e todas as manhãs o velho ia para uma pequena clareira no meio da floresta, fazer suas orações, enquanto a garota providenciava o desjejum. Terminou de limpar os peixes, colocando-os em um cesto de vime. Jogou algumas ervas por cima, e cobriu a cesta com uma toalha de linho cru que ela mesma havia feito. O eremita providenciara para a garota semanas atrás um fuso e um tear, e conseguira linho, algodão, agulhas e linhas coloridas. Ela sabia fazer tecidos e bordados com algum capricho, e já havia enfeitado a cabana com toalhas, cortinas, tecendo também uma bela toalhinha decorada com pequenas cruzes para o oratório do padre. Enterrou os restos do peixe a alguma distância da cabana, e quando retornou arrebatou a cesta e se dirigiu à cozinha. Enquanto preparava a comida, tentava lembrar o sonho horrível que tivera. Nele, a cabana do eremita estava em chamas, e de dentro dela o velho gritava para que ela corresse, enquanto um tropel de cavalos parecia perseguí-la, e ela tropeçava nas raízes das árvores enquanto fugia. Quando parecia que iriam alcançá-la, ela acordou assustada e ensopada de suor. Não havia amanhecido ainda, mas como ela não conseguia mais dormir, caminhou em direção ao riacho com um anzol e uns petiscos de isca, para refletir enquanto pescava.

Porém, quanto mais pensava no sonho, mais assustada ficava, então resolveu esquecê-lo e concentrar-se na tarefa que estava fazendo naquele momento, pois quase derrubara o tacho de ferro em seu pé quando foi tirá-lo da prateleira. Fritou os peixes com a manteiga de cabra que fizera na tarde do dia anterior, e serviu junto com duas fôrmas de pão que já estavam sendo aquecidas. Terminou mais cedo do que de costume, e como estava faminta, não esperou o eremita para começar a comer. Enquanto remexia o peixe à procura de espinhas, pensava novamente no sonho. Era tão medonho que parecia real. Gostava daquele velho, ele cuidou dela como um pai, e não queria que nada de mal lhe acontecesse, ainda mais por sua causa. Sabia que poderia estar sendo procurada, e nesse caso o padre Thimoty poderia ter problemas por ter lhe abrigado. Contudo, foi só um sonho. Por que estava com tanto medo assim?

Confusa, deslizou distraidamente os dedos pela nuca, encontrando a corrente do medalhão que sempre trazia escondido por sob as vestes. Sua mãe o guardava com enorme carinho, dizendo-lhe que tinha pertencido ao pai dela, mas disse também que ela não poderia revelar isso a ninguém. Não fazia idéia do porquê, mas jamais mostrou a jóia a pessoa alguma, por mais que confiasse nela. Tirou-o do pescoço, e ficou observando o diamante negro lapidado em forma de corvo no centro do medalhão de prata. Era tudo o que restava da sua família.

Súbito, o eremita entrou na cozinha. Arabella estava tão distraída que não havia escutado ele chegar, e se levantou assustada, deixando cair o medalhão. Ela fez menção de abaixar para pegá-lo, mas Thimoty a interrompeu com um gesto, olhando sério para ela, como da vez que a garota demonstrara sua animosidade contra a Igreja. Arabella empalideceu, vendo seu segredo mais precioso caído no chão. O velho caminhou em direção a ela, abaixando-se para pegar a jóia, que ergueu diante dos olhos. Seu semblante estava terrivelmente impassível.

– Onde você pegou isso?

– Eu não roubei! – falou, um pouco mais alto do que pretendia. – Era da minha mãe. Ela disse que ganhou do meu pai, quando eles se conheceram.

– E onde está seu pai agora?

– Morreu antes que eu pudesse conhecê-lo.

Arabella contou ao velho sua história. Enquanto o fazia, parecia que um enorme peso lhe era tirado das costas. O padre ouviu com paciência, respeitando os momentos de silêncio onde ela parecia ter que criar mais coragem para continuar. Quando ela terminou, ele olhou nos olhos da garota, com um ar de incredulidade perpassando seu rosto, mas pareceu concluir que ela não estava mentindo, e lhe devolveu o medalhão.

– Tudo bem. Mas guarde bem essa jóia, criança! Ela não é tão preciosa quanto sua vida. E é uma pena que seja tão apegada a ela, pois talvez fosse melhor até mesmo desfazer-se desse medalhão.

– O que quer dizer?

– Este é o brasão de uma das antigas famílias de nobres pagãos, que foram perseguidas e extintas pelos monges negros. Poucos deles sobreviveram, e apenas porque conseguiram provar que eram bons cristãos, e que, por temor a Deus, renunciaram às suas tradições. Se pegarem você com esse medalhão, temo que não sobreviva aos inquisidores, pois essa jóia a identifica como um deles, e se não puder explicar como veio parar em suas mãos, meus irmãos mais afoitos a tomariam por uma herege.

Ela pôs o medalhão de volta no pescoço, escondendo-o como sempre fazia.

– O que você fez com o crucifixo de sua mãe? – perguntou, de súbito, o eremita.

– Deixei-o com Ms. Hannah, como presente de despedida. – respondeu a moça, intrigada. Não se lembrava de ter mencionado a jóia da mãe.

O velho percebeu a confusão no semblante de Arabella, mas nada acrescentou. Caminhou lentamente até o oratório, sem olhar para a garota, e começou a reacender algumas velas que não resistiram à brisa da manhã. Ela lutou por um momento entre a vontade de descobrir como ele sabia do crucifixo, e o medo de parecer impertinente. Tinha a estranha sensação de que aquele medalhão era um símbolo de alguma coisa perigosa, e o padre reagiu de forma terrível a ele. Por fim, a sua curiosidade foi maior, e tomando o maior cuidado que podia ao escolher as palavras, perguntou.

– Senhor, me desculpe, mas não me recordo de...

– Ter mencionado o crucifixo? – completou o velho, ainda de costas. – Fui eu quem o deu de presente à sua mãe. Deu um longo suspiro, abaixando a cabeça.

– Eu conheci Madeleine quando era apenas uma garotinha. Uma boa menina, viva e inteligente, mas muito misteriosa. Como você, Arabella.

Voltou-se para a garota, que estava muda de espanto.

– Não lhe contarei esta história hoje. – emendou em um tom áspero. – Estou faminto! E preciso de mais velas, aquelas são as últimas!

A garota olhou desanimada para os tocos de velas cujas chamas tremiam com o vento. Não ia conseguir que o padre lhe contasse nada enquanto estivesse zangado pelo fato dela lhe guardar segredos, sobretudo segredos que poriam sua vida em risco. Teria que esperar que ele mesmo decidisse se deveria ou não confiar nela.

***

Dois dias depois, o velho Thimoty recebeu a visita do mensageiro de uma de suas benfeitoras. Ele trazia dois fardos muito bem arrumados de mantimentos, junto com um bilhete. O eremita leu o recado curto, escrito às pressas, e ergueu os olhos para o garoto à sua frente. O pedaço de papel em suas mãos estava assinado por Lady Alexia McFair, esposa do marquês e mais rico mercador de Weymouth. Nele, a marquesa recomendava que o padre fugisse para o norte, pois teve conhecimento, em um dos jantares do qual participara com seu marido, que Lord Landaff Moey, o Duque de Portland, havia contratado um grupo de mercenários para capturar uma jovem que se escondia na floresta, e eles provavelmente destruiriam qualquer coisa – ou pessoa – que tentasse lhes barrar o caminho.

– Eu vi os homens contratados pelo duque, senhor! – disse o rapaz. – Acho melhor seguir o conselho de Lady Alexia.

O eremita empalideceu. Atirou o bilhete nas chamas da lareira, e ficou olhando o fogo por um momento. Lembrou-se do medalhão da garota, e suspirou preocupado. Se encontrassem Arabella com aquela jóia, ela não teria a menor chance de sobreviver aos seus captores. Ele correu ao seu encontro, para alertá-la do perigo iminente, e a encontrou rachando lenha nos fundos da cabana.

– Arabella! – chamou.

A garota escorou o machado no toco onde trabalhava, e caminhou em direção ao eremita. Ele entrou na cozinha, acenando para que ela o seguisse, e se sentou à mesa. Arabella arrastou o banco para ficar diante dele, estranhando o comportamento de Thimoty. Ele a olhou profundamente, enquanto a moça torcia as mãos no colo, angustiada com seu silêncio prolongado. Por fim, o eremita inspirou profundamente, e começou a falar.

– Conheci sua mãe quando ainda era muito pequena, pois costumava visitar sua avó, Sibila Tyburn, ou Sibila “Dell”, como gostava de ser chamada, para tentar convertê-la ao Nosso Senhor. Madeleine era apenas uma criança, e gostava das histórias que eu contava, de modo que, na tentativa de transformar Sibila em cristã, creio ter conseguido tocar o coração da menina. Quando percebi isso, dei-lhe de presente meu crucifixo, na esperança de que ela se lembrasse de mim e do Senhor Jesus quando fizesse suas orações. Porém, como sabe, tive que renunciar ao convívio com os fiéis, sendo obrigado a viver em isolamento por todos esses anos. Me recusei a capturar uma das Famílias Antigas para os inquisidores, e quase fui encarcerado por isso. Apenas quando jurei tornar-me um eremita, me afastando dos fiéis e das ações da Igreja, os meus irmãos de hábito negro me deixaram partir.

“Hoje recebi uma carta de uma de minhas benfeitoras, um dos membros daquela família que tentei proteger. Seu nome é Lady Alexia McFair, e segundo ela, partiram de Portland, pouco depois de seu mensageiro, um grupo de mercenários à procura de alguém que se esconde nesta floresta. Quem os contratou foi Lord Moey, e tenho razões de sobra para acreditar que estão atrás de você. Ela me aconselhou a rumar para o norte e pedir proteção ao seu irmão, mas acho mais prudente permanecer aqui. Não acredito que fariam nada contra um velho padre, e posso tentar desviá-los de sua busca enquanto você foge. Deve rumar para o norte, em direção às profundezas do vale; lá talvez tenha mais chance de escapar. E não deve se demorar mais, se quiser ganhar alguma dianteira de seus captores.

Arabella levantou-se de um salto, correndo para arrumar sua mochila. Thimoty juntou às suas coisas um pequeno fardo de comida, não muito pesado, para não atrasá-la. Entregou-lhe também as tintas, penas e folhas de papel que sobraram das aulas, e a pele de urso na qual ela costumava dormir. E a sua bíblia.

– Já que deixou o crucifixo de sua mãe para trás, aceite isso como um presente de despedida. – disse, enquanto abençoava a garota. – Para que se lembre de mim, e do Senhor Jesus, durante sua jornada.

Arabella abraçou o velho por um momento, em seguida apressou-se a ir embora, cobrindo a cabeça com o capuz do manto para se proteger do ar frio que invadia a cabana pela porta aberta dos fundos, por onde desapareceu no meio da noite que começava a tingir o céu de negro. Corria sem descanso na escuridão da floresta, tentando não pensar no velho que ficara para trás. Vagou pelas árvores durante toda madrugada, deixando a maior distância possível entre ela e seus captores. Quando o cansaço ameaçou seus passos, diminuiu a marcha e prosseguiu. Ao amanhecer, encontrou uma margem do rio, onde a água corria mais veloz pelas pedras. Em seu caminho desconexo no meio do bosque começava uma subida, e ela resolveu parar para descansar. Encontrou um tronco oco próximo à margem; escondeu sua mochila, esgueirou-se para dentro da árvore, tentando não despedaçar a madeira podre, e adormeceu.


Trecho de ARABELLA