domingo, 12 de setembro de 2010

ARABELLA - Tomo I {Heresia}

Cap. 1
Fogueira



Ela continuava parada ali, enquanto a neve rodopiava ao seu redor. O fogo se extinguira por completo, e o frio começava a lhe incomodar. Cobriu os olhos marejados com o capuz, desviando o olhar da fogueira pela primeira vez desde que fora acesa. A praça estava vazia, mas não tardaria a retomar sua rotina habitual, pois o sol já começava a surgir no horizonte, se levantando para acordar a todos. Decidiu sair dali antes que isso acontecesse.

A garota passava pelas casas da cidade onde morava a pouco menos de dois anos, observando-as pela última vez. Lançando mais um olhar para trás, viu a imponente Igreja de Saint Peter, no centro de Dorchester, encimando a grande praça onde estivera momentos atrás. Ainda saíam alguns finos cordões de fumaça dos restos da grande fogueira, que ardera por toda a noite em seu centro, com a multidão ao seu redor. Voltou-se rapidamente, lutando contra as lágrimas que teimavam em retornar aos seus olhos verdes, e seguiu seu caminho para casa.

Enquanto enfiava seus pertences na mochila, Arabella lembrava o tempo que passou naquela cidade. Torcia para que Ms. Hannah não acordasse; não gostava de despedidas. Doía pensar que poderia não tornar a vê-la, então dirigiu-se ao oratório da sala e deixou pendurado na imagem da Virgem Maria o pequeno crucifixo de prata que havia sido de sua mãe. Com lágrimas nos olhos, acendeu também uma vela, e murmurou uma oração pedindo à Mãe de Deus que a abençoasse.

Saiu da paróquia sem olhar pra trás. Não tinha para onde ir, mas isso pouco lhe importava. Toda a sua vida havia se transformado em cinzas diante dos seus olhos. Não havia sido ela mesma durante mais de seis estações. Emparedara seus sentimentos bem no fundo do peito, fingindo-se alheia e feliz com tudo à sua volta. Até mesmo seu nome quase foi esquecido, pois todos a conheciam como Amie, a garota que vendia bolos no mercado. Tinha certeza que manter segredo acerca de sua identidade a havia mantido a salvo durante esses quase dois anos. Mas agora Amie estava morta; jazia nos restos daquela fogueira, junto com seu passado, sua família e seu lar. Já era tempo de ser Arabella novamente, e começava a gostar disso. Estava livre, ainda que seu coração estivesse dilacerado. Sentia o sabor de seguir sem rumo, consciente de que estava só no mundo, mas ainda estava viva. E assim continuaria.

Caminhava a esmo pelas plantações, evitando ser vista pelos camponeses, dormindo nos celeiros ou em velhas casas abandonadas, vez por outra improvisando um abrigo quente ao lado de uma pequena fogueira, deitando-se sobre um grosso manto de peles para impedir o contato com o chão gelado. Seguia em direção ao norte, cobrindo grandes distâncias durante o dia, e prosseguindo mesmo depois do anoitecer, adormecendo somente quando não conseguia seguir mais adiante.

Arabella não tinha levado muita comida, então fazia o possível para economizar a que tinha. Por vezes capturava uma galinha que tivesse se afastado demais das terras de seu dono, chegando mesmo a assaltar um galinheiro numa madrugada, à procura de ovos. Quando se afastou dos campos, porém, esses pequenos recursos extras desapareceram. Após vários dias de caminhada, a garota alcançou a proteção das árvores da floresta em Blackmore, e sentiu seus músculos relaxarem um pouco, diminuindo o ritmo de seus passos. Em Dorchester, ouvira falar que o Vale Blackmore era assombrado, mas ela não temia os mortos. Os vivos preocupavam-na muito mais. Algumas horas depois, ouviu o barulho das águas e resolveu seguir o som. Chegou à beira de um riacho, já ao pôr do sol, onde parou para comer. Tirou da mochila um pequeno fardo com um pão duro, um pedaço de carne seca e algumas frutas desidratadas, sua última porção de comida. Comeu rapidamente, depois se curvou sobre o rio para beber água e encher seu cantil, que estava seco há dois dias.

De repente, pareceu-lhe que alguma coisa se movera na vegetação atrás dela. Virou-se de súbito, olhando em volta assustada, mas não conseguiu ver nada. Invadiu-lhe a sensação de que estava sendo observada.

– Quem está aí? – perguntou.

Não houve resposta. Nada se mexia no silêncio da floresta, exceto as folhas das árvores balançando ao vento, e as águas do riacho atrás dela. Caminhou em direção ao ruído, sem conseguir ver muita coisa na fraca luminosidade da floresta. Já estava anoitecendo, e ela ainda tinha que procurar um lugar para dormir. Encontrou um lugar perfeito pouco afastado da margem. Uma árvore de raízes enormes, onde ela podia se aconchegar ao abrigo do vento gélido da noite. Tirou a neve do local, que não era muita por causa da copa densa, estendendo no espaço entre as raízes sua pele mais quente. Descansou a cabeça na mochila e se cobriu com o pesado manto de viagem, adormecendo quase imediatamente.

***

Na manhã seguinte Arabella acordou com os músculos enrijecidos pelo frio e desconforto. Levantou-se lentamente, fazendo esfarelar-se a fina camada de gelo que se formara sobre seu manto. Arrumou suas coisas e voltou à beira do riacho bem cedo, imaginando se a água estaria gelada demais. Inclinou-se sobre a margem para beber, quando ouviu um leve estalo. Assustou-se, virando depressa a cabeça na direção do barulho, mas tudo que viu saindo dos arbustos foi um coelho cinzento.

– Volte aqui!

Arabella correu atrás do coelho, atirando pedras, até que uma delas acertou o bicho na cabeça e ele caiu rolando no chão. Ela o alcançou rapidamente, e com uma pancada mais forte deu cabo do pequeno animal. Voltou com o coelho morto para onde estava sua mochila, e começou a prepará-lo para ser assado. Enterrou o couro e as vísceras longe do riacho, para que seu cheiro não atraísse outros bichos, lavou sua carne e a temperou com algumas ervas que trouxera consigo. Começou então a juntar lenha para assar a carne, e em poucos minutos estava sentada diante de uma fogueira de fogo lento, mas firme. Ela apoiou seu desjejum em um espeto improvisado com um galho, em seguida se sentou e ficou observando as chamas. O cheiro das ervas se espalhou rapidamente no ar, atraindo não animais, mas uma figura bastante singular.

A garota o viu surgir lentamente por entre as árvores, como que receoso de se aproximar, e ficou observando-o intrigada. Era bastante velho; seus cabelos eram completamente brancos, e tão compridos quanto sua barba. Vestia um hábito de monge, de um marrom tão desbotado e gasto que era impossível dizer a cor que ele tinha quando era novo. Era preso na cintura por um cordão trançado, e terminava a um palmo dos seus tornozelos. Nos pés, o estranho usava sandálias de couro tão gastas quanto sua roupa.

– Bom dia, criança! – disse, em tom suave. – Se incomodaria em dividir sua refeição com um velho faminto?

– Claro que não, senhor! – ela responde. – Sente-se! Logo estará pronta.

O velho sentou-se diante da fogueira interpondo-a entre ele e a garota, porém de modo que tivessem visão clara um do outro. Arabella estava surpresa demais para sustentar um diálogo, embora ele tentasse encorajá-la com um sorriso, sem muito sucesso. De modo que, depois de algum tempo, o monge resolveu quebrar o silêncio.

– O que faz tão longe de casa?

– Não tenho casa. – foi só o que ela conseguiu responder antes que a voz falhasse outra vez.

– Bom, EU tenho uma casa. – retruca o velho. – Não é lá grande coisa, não passa de uma cabana velha. Pode cuidar dela, e dar um descanso para meus velhos ossos, se quiser. Assim não teria que dormir toda noite ao relento.
Ele abriu um sorriso simpático no rosto, e lançou um olhar astuto para a garota. Ela então compreendeu que era ele quem a observava desde que chegou ali. Estava mesmo cansada de dormir no chão duro e gelado, muitas vezes tendo apenas as estrelas como teto, de modo que ponderava a oferta do velho. Foi quando se lembrou de que não o conhecia.

– Perdão, mas... Quem é o senhor?

– Sim, claro! Perdoe a rudeza deste velho! Vivo nesta floresta há tanto tempo, tendo apenas os animais por companhia, que muitas vezes esqueço-me de formalidades como apresentações. Meu nome é Thimoty Clarkson. Outrora fui o capelão de uma pequena igreja na Cornualha.

– O senhor é um padre? – perguntou a garota, mal conseguindo disfarçar o sentimento de repulsa que lhe invadia.

– Não mais. Agora sou apenas um pobre eremita. Creio que minhas idéias se tornaram um pouco diferentes das dos meus irmãos. Então, resolvi viver em isolamento e contemplação, em uma cabana um pouco mais a leste. Para viver mais, por assim dizer.

– Como assim?

– Bem, digamos que não tenha conseguido ver maldade nas antigas crenças dos camponeses, que meus irmãos perseguem com tanta diligência. Então, meus superiores acharam que eu estava ficando indulgente demais, e resolvi me eclipsar antes que eles descobrissem que eu era muito bem vindo entre os pagãos.

– Entendo. – murmura ela, pensativa. – Meu nome é Arabella.

Depois de encerradas as apresentações, o semblante da garota assumiu um ar tão circunspecto que desencorajou as tentativas de diálogo do velho. Voltou sua atenção para o coelho, cortando pequenos nacos de sua carne em uma tigela para que pudessem mordiscar enquanto esperavam o restante assar por completo. De boca cheia, o padre não lhe faria perguntas.

Então, os chacais da Igreja também caçavam os seus semelhantes! Pensou nos dois longos anos que passara sob a proteção de Ms. Hannah, escondida pelo disfarce de Amie, a criada que vendia bolos na feira de Dorchester e acompanhava a viúva nas missas. Lembrou da angústia de esperar por meses a fio para que pudesse voltar à sua vida de antes, em seu lar humilde, com sua família, e descobrir desesperada que jamais teria essas coisas de volta.

Compreendia por que o velho resolvera desaparecer, afinal, ela mesma estava fugindo. Fugindo dos padres negros e da perseguição aos que pensavam diferente deles, aos que acreditavam em coisas que eles diziam ser pecado acreditar. Fugindo de seu passado, que ainda ardia em seu peito como aquela fogueira em Dorchester. Fugindo e se escondendo, sem saber ao certo o motivo, ou do que fugia, mas de uma coisa ela tinha certeza: se não fugisse, não viveria o suficiente para descobrir.



OBS.: "Padres negros" aqui refere-se aos Inquisidores da Ordem de São Bento ou da Ordem de São Domingos. Eram assim chamados por causa de seus hábitos pretos.

 Trecho de ARABELLA

2 comentários: