segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

ARABELLA - Tomo I {Heresia}

Cap. 2
O Eremita


Depois da refeição, os dois caminharam pela floresta por várias horas, até chegarem a uma cabana de caçador no meio das árvores. O lugar era desolado, e a neve fazia com que o cenário se assemelhasse a uma pintura. Ao lado da casa, um cercado com algumas cabras e um pequeno galinheiro com tranca de madeira na porta. Nos fundos, os contornos de uma pequena carpintaria adjacente ao casebre.

O eremita empurrou a porta e convidou Arabella a entrar. Ela cruzou a soleira lentamente, observando o ambiente. Por dentro, a cabana era dividida em três cômodos; uma sala, uma pequena cozinha e um quarto ainda menor. Os móveis eram poucos e bastante rústicos. A sala tinha uma mesa com dois bancos compridos, algumas cadeiras, uma estante improvisada com prateleiras cheias de livros, uma pele de urso gasta diante de um oratório com uma imagem da Virgem Maria em madeira polida e um crucifixo na parede atrás dela, ambos provavelmente esculpidos pelo próprio padre.

Na cozinha, mais prateleiras com tachos e panelas, um caldeirão vazio pendurado no gancho do fogão, alguns fardos de mantimentos pendurados no teto e uma mesa baixa com quatro banquinhos de três pernas. No quarto, um catre coberto com um colchão de palha e uma mesinha de cabeceira com uma lâmpada a óleo, uma bíblia em língua comum, traduzida por ele mesmo, e um terço.

– Não é muito grande, mas deve ser o suficiente para nós dois. – diz o padre. Acredito que esteja acostumada a viver sem conforto.

Arabella fez que sim com a cabeça, e descansou a mochila ao lado do catre, correndo os dedos pela capa do livro. Olhou para o padre, que lhe fez um gesto permissivo, e apanhou o manuscrito. Sentando-se na cama com a bíblia aberta nas mãos, correu os olhos pelos sinais que não conseguia compreender.

– O senhor sabe o que significam?

O velho riu divertido, sentando-se lado da garota.

– Claro que sei, pequenina! Estudei por vários anos antes de me tornar padre, e continuei por tantos outros, mesmo depois que vim para cá.

– Gostaria de poder compreender o significado destes traços. – falou, admirando as letras caprichosas do padre nas folhas de papel.

– Posso ensinar-lhe, se quiser.

A garota olhou para ele, com uma expressão de alegria estampada no rosto.

– Claro que quero! – respondeu. – Ms. Hannah me falou que só os homens e as ladies podiam aprender!

– Não é verdade. As irmãs dos conventos também aprendem a ler.

– É, mas elas são da Igreja. – e novamente sua voz ficou marcada pelos sentimentos de revolta e desprezo que mal conseguia disfarçar.

– Por que tem raiva da Santa Igreja, menina?

Perguntou o padre, sério. Arabella baixou os olhos, envergonhada. Tentou pedir desculpas pela grosseria, mas um nó na garganta a impediu de falar. Era verdade, ela odiava a Igreja. Sua vida havia sido destruída por ela, e mesmo que sentisse uma certa simpatia por aquele velho padre, não havia como negar esse ódio. Imaginou que o manto cinzento do eremita ajudava; era bem diferente dos mantos negros dos padres e monges que mais detestava no mundo. Enquanto vivera com Ms. Hannah, ouvira dela algumas histórias da vida de Cristo, e a acompanhava às missas dominicais. A protetora de Arabella era devota da Virgem Maria, e a garota gostava muito da viúva para importuná-la com questionamentos acerca da sua fé. No entanto, até mesmo Ms. Hannah ficara horrorizada com a sequência de eventos que fundamentou a amizade entre essas duas mulheres tão diferentes. E sobre esses eventos Arabella ainda não tinha a menor vontade de conversar.

***

Durante todo o restante do inverno, Arabella viveu na cabana com o velho eremita, cuidando da casa e providenciando comida para os dois. Thimoty recebia ajuda de senhoras ricas que mandavam mensageiros carregados de mantimentos com alguma freqüência, de modo que não lhe pesava tanto alimentar a garota. Além disso, ela deixava sua cabana em um estado bem mais agradável de limpeza, e preparava refeições mais saborosas que as que ele conseguia improvisar com o que tinham. Ele, em troca, lhe ensinava a ler e escrever, incluindo nas aulas os preceitos cristãos. Preparou alguns blocos de argila, pois de início não tinham papel nem pergaminho, e desenhou em cada um deles as letras do alfabeto, maiúsculas e minúsculas, para que ela copiasse. Posteriormente, ensinou-a a reconhecer as letras nas palavras, usando versículos do Novo Testamento, que a garota lia e copiava os textos em pedaços de pergaminho. Ela aprendia depressa, então Thimoty resolveu pedir a alguns de seus benfeitores que incluíssem papel, penas e tinta aos seus donativos costumeiros de mantimentos.

Arabella era uma aluna aplicada, de forma que em pouco tempo conseguia discernir as palavras o suficiente para ler sozinha alguns capítulos da Bíblia. Gostava das histórias de Jesus e de seus apóstolos. E gostava daquele padre, embora seu ódio pela Igreja não arrefecesse nem mesmo com a amizade com o velho. Achava que o que os outros padres faziam não tinha nada a ver com o que aquele judeu pregara na Palestina, há quase mil e quinhentos anos atrás. E achava também uma injustiça que Jesus tivesse sido açoitado e crucificado por dizer a verdade. Mas conhecia o suficiente dos homens para saber que, quanto mais poder eles tem, mais mal são capazes de causar.

– E por que Deus deixou que crucificassem seu filho? – perguntou ao velho, pela décima vez.

– Porque isso fazia parte do plano de Deus. – repetiu o padre, também pela décima vez. – Com a morte do Cristo, nossas almas foram purificadas. E com sua ressurreição, elas foram resgatadas das mãos do diabo.

– Se nossas almas foram resgatadas, por que os padres falam que vamos todos queimar no inferno?

– Porque somente aqueles que são batizados pelas águas, como Jesus foi, e confessam seus pecados, podem ser dignos da graça da salvação.

– Mas por que ele precisou morrer? Quer dizer, não tinha outro jeito?

– Criança, quem somos nós para entender os desígnios de Deus! Mas acredito que tivesse que ser assim, porque somente o sangue de um inocente poderia redimir os pecados da humanidade. E dando seu próprio filho em sacrifício, Deus mostra o quão grande é seu amor por nós.

– Se Deus realmente nos ama, por que deixa tantas pessoas inocentes morrerem nas mãos daqueles padres negros?

– Creio que a culpa, neste caso, não seja de Deus, mas dos homens que interpretam erroneamente suas intenções. Muito sangue já foi derramado “em nome de Cristo”, mas não acredito que ele se sinta lisonjeado com isso. Porém, Deus recompensa os mártires. Para eles, as portas do Paraíso estarão sempre abertas.

Era com diálogos desta natureza que os dois preenchiam o tempo na solidão da floresta. Arabella aprendeu as doutrinas do cristianismo e os dogmas da Igreja, porém sob a visão crítica do padre, o que fez com que ela se tornasse mais receptiva e pudesse assimilar melhor seu conteúdo. Sabia que sua mãe não era uma cristã no sentido literal, mas por vezes a ouvia repetindo a oração do nazareno, de vez em quando pontuada por imprecações contra os padres, que xeretavam suas vidas em busca de pecados com os quais pudessem aterrorizá-las. E embora só tenha aprendido as orações tradicionais com o eremita, ela por vezes tentara compreender alguma coisa daquela cantinela monótona dos padres, quando ia à Igreja com Ms. Hannah. Apenas sua avó desprezava completamente as crenças cristãs, e nunca rezava. Mantinha-se fiel à Antiga Tradição, e costumava dizer que um Deus masculino só servia para complicar as coisas. E por muitas vezes Arabella se viu obrigada a concordar com ela, embora não compreendesse totalmente o significado dessa enigmática afirmação.

Por outro lado, a garota aprendeu a sobreviver na floresta de tal maneira que reconhecia todos os ruídos, conhecia todas as trilhas e esconderijos daquelas redondezas, e conseguia até mesmo prever o tempo com alguma exatidão. Aprendera a rastrear diversos tipos de pegadas, e caçava animais de pequeno e médio porte, chegando mesmo a matar um lobo certa vez, quando foi surpreendida por ele enquanto seguia os rastros de uma raposa. Construiu algumas armadilhas para aves e uma rede de pesca muito boa, com a qual garantia saborosos peixes para acompanhar os pães que o eremita recebia cerca de duas vezes por mês.

Arabella não se sentia tão bem desde que fora acolhida por Ms. Hannah. Viver na floresta com o velho Thimoty lhe trouxera de volta a ilusão de que tinha uma família. Ainda assim, alguma coisa naquele lugar a deixava inquieta. Achando que fosse por causa do isolamento em que estava vivendo, procurava afastar essa sensação sempre que lhe sobrevinha. Mas também não podia deixar de notar que Thimoty estava sendo bastante tolerante em relação ao seu silêncio persistente sobre seu passado. Sempre que ele a questionava, dava-lhe respostas evasivas, procurando a todo o custo não mentir, embora tivesse certeza que o velho sabia que havia muito mais a dizer. Temia que ele não a abrigasse mais se descobrisse quem ela era, e os segredos que escondia. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que contar toda sua história àquele velho eremita.

Súbito, ela abriu os olhos diante do fogo, assustada. O fuso em suas mãos acabara de lhe furar o dedo. Thimoty já havia se recolhido, e ela resolveu ir dormir também, uma vez que estava cochilando no meio do trabalho. Arrumou sua cama improvisada sobre a pele de urso e deitou-se, contemplando as velas acesas no oratório do padre. Olhava sonolenta para as chamas trêmulas, sua atenção atraída pelo poder encantador do fogo, ainda que contido, preso naquelas pequenas velas. De repente, viu-se novamente na Praça de Saint Peter, diante das chamas de uma grande fogueira que ardia em seu centro.


 Trecho de ARABELLA

Nenhum comentário:

Postar um comentário