quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A Filha da Parteira

O sol se erguia preguiçoso no horizonte, iluminando a fumaça que subia aos céus em uma densa espiral. Ela continuava ali parada, alheia ao cansaço e à fome, tentando entender o que havia acontecido. O vento frio cortava seu rosto, ainda aquecido pelo calor do fogo que agora se extinguia. Olhava para os restos da enorme fogueira diante de si, e se perguntava como tudo aquilo começou. Recordou de si mesma ainda pequena, vendo sua mãe se arrumando apressada para atender um senhor muito jovem que aguardava aflito na soleira da porta aberta da sala.
– Minha esposa está para dar a luz, senhora! – dizia alto enquanto a porta do quarto se fechava. – Por favor, apresse-se!
Então sua mãe saía às pressas, e demorava a voltar, como tantas outras vezes em outras tantas horas diferentes do dia ou da noite. Madeleine Tyburn era a melhor parteira da região, e atendia não só aos moradores da vila onde viviam, mas também a toda a circunvizinhança, motivo pelo qual às vezes passava vários dias fora. Então a pequena Arabella ia para a casa de sua avó, Sibila, onde aprendia a fazer chás e bolos de diferentes tipos. Alguns anos mais tarde, por volta dos 9 anos, já acompanhava sua mãe em alguns partos mais próximos de casa, e a ajudava como podia, enquanto a velha Sibila ensinava agora chás para dor de barriga, beberagens para dor de dente e pastas de ervas para curar ferimentos. Era assim que se transmitia a profissão: de mãe para filha, as mulheres da família aprendiam desde cedo os mistérios do nascimento e da vida, e mais tarde, da morte.
Nem todos os partos eram bem sucedidos. Arabella se recorda do primeiro recém-nascido que vira morrer, e de como o pai da criança reagiu à notícia:
– Bruxa! Mataste meu filho! Pagarás por isso, pagã maldita!
Tampouco todos os pedidos eram de homens que em breve seriam pais; às vezes, algumas jovens procuravam Madeleine não para dar a vida, mas para interrompê-la. Essas a parteira atendia em um quartinho dos fundos, já preparado para recebê-las, no qual Arabella foi proibida de entrar até seus 13 anos. Outras vezes senhoras mais velhas chegavam se queixando de dores enquanto tomavam chá na sala, e saíam com saquinhos de preparados de ervas que sua mãe lhe explicou que eram para aliviar os males do fim das regras da mulher, quando ela se tornava anciã.
Assim, aos 16 anos Arabella já sabia o suficiente das artes da profissão para se considerar uma parteira iniciante. Acompanhava sua mãe em todos os casos, atendia sozinha os mais fáceis e dava assistência às mulheres que precisavam ficar de repouso depois de abortos mais complicados. Foi aí que tudo começou.
Madeleine havia sido chamada à casa de Lady Caroline, esposa de Lord Landaff Moey, duque de Portland, para atender sua filha Mattie, que tinha a idade de Arabella. A garota escondia há 6 luas (cerca de 5 meses) uma gravidez que provocaria uma verdadeira explosão no pequeno castelo da família Moey. Antes que seu marido descobrisse da pior maneira o romance da filha com o filho do moleiro, Lady Caroline chamou a parteira em segredo, para que fizesse o aborto em casa, aproveitando-se de uma ausência demorada de Lord Moey.
– A gravidez está avançada, e a garota é muito jovem. – Argumentou Madeleine. – Não é prudente um aborto nessas condições.
– Apenas faça! – respondeu asperamente a duquesa.
Dada à posição de Lady Caroline, e a gravidade da situação, a parteira não teve como recuar. Sabia das conseqüências se falhasse, mas não teria sorte diferente se recusasse. Com uma breve oração à deusa esquecida da vida e da morte, Madeleine iniciou os procedimentos, temendo tanto pela vida da garota quanto pela sua própria. Mattie parecia estar resistindo bem, mas uma hemorragia pôs fim às esperanças da parteira de que ela sobrevivesse ao aborto. Fez tudo que podia para salvar a garota, e Mattie ainda resistiu por dois dias, morrendo no amanhecer do terceiro dia.
Quando Lord Moey retornou, Lady Caroline o convenceu de que a morte de sua filha fora provocada pelas ervas de Madeleine, que havia sido chamada para curá-la de um descontrole em suas regras. Então o duque de Portland, cristão convicto e bastante influente na Igreja, procurou o pároco e acusou a pobre parteira de assassinato. E não de um assassinato comum; Madeleine havia matado sua filha com as artes negras da bruxaria, que havia aprendido com sua mãe, a famosa pitonisa Sibila Tyburn. Um eminente bispo de Yorkshire, famoso por ter condenado à fogueira várias mulheres em seu condado sob a acusação de bruxaria, foi comunicado de que a filha do duque de Portland sangrara até a morte nas mãos de uma bruxa. Armado com uma bíblia e um compêndio de Kramer e Sprenger, os “filhos queridos” do Papa Inocêncio VIII, o bispo de Yorkshire rumou para o condado de Dorset.
No dia seguinte à chegada do bispo, Madeleine foi denunciada oficialmente ao Santo Ofício por assassinato e bruxaria pelo duque de Portland. Alguns dias depois, foi chamada a depor perante o bispo beneditino, e Arabella ficou sozinha em casa esperando sua mãe voltar do interrogatório. Mas os dias foram se passando, e Madeleine não retornava, nem mandava notícias. Atordoada e com medo do que poderia ter acontecido, procurou sua avó, mas encontrou a casa vazia. Soube, pelos vizinhos, que Sibila tinha sido levada pelos inquisidores há uma semana, portanto três dias antes de sua mãe. Rumou então para a Igreja de Saint Peter, em Dorchester, e lá ficou sabendo que as duas estavam sendo interrogadas separadamente quase todos os dias. Alguns falavam em torturas horríveis, como cordas e ferros em brasa, outros ainda falavam de uma roda que esticava os membros do infeliz até que ele confessasse tudo quanto os inquisidores quisessem.
Arabella não voltou para casa. Dormia nas ruas escuras e malcheirosas próximas ao mercado, sobrevivendo de pequenos serviços em troca de comida, até que uma senhora chamada Hannah compadeceu-se dela e a abrigou. Ensinou-a a fiar e tecer, depois a bordar, e a garota pagava sua estadia com trabalho, como aprendiz da velha senhora. Esta, por sua vez, trazia informações da Igreja sobre Madeleine e sua mãe. Assim a garota pôde saber da morte de sua avó, cerca de dois meses depois de sua chegada.
Ms. Hannah Hutton, uma viúva bastante conhecida por suas belas peças de linho, que adornavam principalmente o púlpito e o altar principal da Igreja local, não tinha dificuldades em colher informações entre os mexericos das beatas. Contou que Sibila fora interrogada pela água, mas os inquisidores calcularam mal sua resistência e ela morreu de uma pneumonia adquirida em decorrência da tortura aplicada, depois de semanas de agonia. Madeleine, no entanto, suportava a tudo, recusando a confessar-se bruxa e alegando-se inocente das acusações que a essa altura já incluíam dezenas de mortes de recém-nascidos, algumas mulheres, e até mesmo gado e plantações de moradores próximos à vila onde morava. Havia também acusações de “mau olhado”. Ainda assim, a parteira passara pelo interrogatório e pela tortura, mas continuava irredutível. A certa altura Ms. Hannah soube horrorizada que os inquisidores tinham ido procurar Arabella para torturá-la na presença de sua mãe, forçando-a assim a confessar seus pecados, porém não encontraram a garota, que a partir desse dia passou a ser chamada de Amie, e a ser apresentada como uma parenta distante da fiandeira.
Arabella começou a fazer bolos e pães, e os vendia no mercado. Aos poucos foi se integrando à vida na paróquia. Com a nova identidade criada por Ms. Hannah, a garota pôde circular dentro dos muros da cidade livremente, absorvendo as diferenças entre aquele lugar e sua pequena vila, com casas distantes umas das outras e grandes florestas em torno das plantações, que davam à terra a aparência de uma enorme colcha de retalhos. Ali as casas eram coladas umas às outras, as ruas estreitas e irregulares, onde as pessoas jogavam lixo e faziam suas necessidades, provocando uma imundície característica dos arredores da barulhenta feira local. Mais adiante ficava a Igreja de Saint Peter, com suas esculturas de santos talhados em pedra e seus vitrais coloridos, contrastando a riqueza da Igreja com a pobreza ao seu redor.
Em pouco tempo “Amie dos bolos” tornou-se bastante conhecida pelos mercadores. Além disso, as encomendas de Ms. Hannah dobraram, já que agora ela contava com a ajuda das mãos hábeis da garota, o que melhorou consideravelmente a vida das duas. Arabella não arriscara mostrar seu conhecimento da profissão de parteira, com medo de chamar a atenção dos padres para si. Apenas para sua protetora mostrara seus dotes, quando esta ficou doente e Arabella a curou com os chás que aprendera com sua avó Sibila. Durante todo o tempo que Ms. Hannah ficara de cama a jovem cuidara dela, além de cumprir sua cota na manufatura, o que fez com que não fosse ao mercado por duas semanas inteiras. Soube depois que nesse meio tempo outra mulher foi trazida para os porões da Igreja acusada de sugar a alma de um recém-nascido pelo nariz.
Até aquele momento, Arabella havia concentrado a acusação de bruxaria à sua família; sua avó era uma pitonisa conhecida, e ouvira várias vezes familiares indignados chamarem sua mãe de bruxa quando algo dava errado, principalmente se a mãe morresse no parto ou o primogênito não sobrevivesse. Comentara o fato com Ms. Hannah, que exclamou em tom de cansaço:
– Minha querida, há dez anos perdemos nossa parteira para as fogueiras da Santa Inquisição, por ter enfeitiçado o antigo padre daqui, fazendo-o cair em pecado. A pobre mulher foi queimada viva com a criança ainda crescendo no ventre. Desde então, não há um mês sem que ao menos uma bruxa seja queimada naquela praça, e já vimos muitas. Será um milagre se sua mãe sobreviver.
Um mês depois soube que a outra mulher havia confessado ser uma bruxa e iria ser purificada pelo fogo em praça pública no domingo depois da missa matinal. Nenhuma das duas quis ir à Igreja nesse dia.
As luas iam e vinham, as estações mudaram, e outras mulheres queimaram na praça, enquanto Arabella aguardava o resultado do processo de sua mãe. Embora soubesse que Madeleine resistia, havia perdido as esperanças de que fosse inocentada. Chorava quase todas as noites agora, mas tomara uma decisão; esperaria para ver sua mãe novamente, ainda que fosse apenas no dia de sua morte. Foi quando recebeu a notícia, em primeira mão, de um dos mercadores que compravam seus bolos: no domingo a bruxa que matou a filha do duque de Portland seria purificada.
Depois de quase dois anos de cárcere e tortura, Madeleine havia sido condenada, pelo crime de bruxaria, a ser queimada viva em praça pública. A garota não conseguia acreditar no que via, pois dentre as acusações que ela ouvia o arauto pronunciar em voz lenta e morosa, existiam coisas absurdas como “cavalgar nua em companhia de outras bruxas, voando ao encontro de Satanás”, “copular com demônios chamados Incubus, e dessa união ímpia gerar uma criança”, “sacrificar os inocentes em louvor ao diabo”, “infligir males ao rebanho de Lord Smith, fazendo-o minguar”, e “fazer sangrar até a morte por artes mágicas a filha do duque de Portland”, a única das acusações que tinha sentido, ainda que também fosse falsa.
Em seguida, viu sua mãe sendo trazida em uma carroça, e acorrentada pelo carrasco a um pequeno poste no centro de uma grande fogueira. A multidão gritava, amaldiçoando-a e lhe atirando pedras e lama. Arabella nunca tinha assistido a uma execução pública, mas aquelas pessoas estavam habituadas ao que consideravam uma diversão bem-vinda, ainda mais quando o condenado era um desafeto da comunidade. Algumas pessoas reconheceram Madeleine; Arabella pôde ver a compaixão em seus rostos, e chegou mesmo a reconhecer uma jovem que sua mãe atendera três anos antes, com seu filho nos braços, se retirando da praça com os olhos marejados e uma expressão de profundo pesar.
Então, lentamente as chamas envolveram a parteira, que gritava e blasfemava contra aqueles que a condenaram, amaldiçoando-os em nome dos deuses antigos, o que provocou reações indignadas da multidão católica, até que uma pedra maior a atingiu na cabeça e ela desmaiou. O corpo de Madeleine foi consumido rapidamente pelas chamas, exalando um odor forte de carne queimada, e quando não restaram mais vestígios da pobre mulher, a multidão se dispersou, restando apenas Arabella e o pálido amanhecer do Solstício de Inverno do Ano de Nosso Senhor de 1486.


By ANGEL

2 comentários:

  1. Eu sou suspeito de falar desse conto pois Angel é minha amiga. Mas quem leu o Anno Domini sabe que o que ou dizer é a mais pura verdade. Se o conto dela não for o melhor do livro é certamente um dos melhores.

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